Crónica | O que se diz não se escreve


Será que somos todos especialistas da Língua Portuguesa, capazes de a adaptar às nossas necessidades, ou apenas adeptos de a atropelar diariamente? 

A Língua, inclusive a Portuguesa, está em constante mutação – e ainda bem, senão continuaríamos a ir à “Pharmácia”. Porém, não o suficiente para cobrir e explicar a quantidade de vezes que se dá uns valentes pontapés nela.
Acredito que não seja por maldade, e muito menos para impressionar, mas a cruel realidade é que nem tudo o que se diz deve ser, literalmente, transcrito para o papel. E provas não faltam.

Comecemos com a palavra “literalmente” que, literalmente, significa dizer algo no sentido literal, com rigor e conforme o texto. Se assim é, porque será que se diz: “Eu já não te consigo ouvir, literalmente”, se a pessoa mantém todas as suas capacidades auditivas e continua, de facto, a ouvir? Estará a mentir? A exagerar? Ou apenas não sabe a diferença entre o sentido figurativo e o literal? Permanece a questão.  

Outro pontapé é a espontânea aglutinação entre “folheto” e “panfleto”, resultando em “panfolheto”. Uma palavra que muitos acreditam ser real e gramaticamente correta. Não é, até porque não existe. Mas, sejamos honestos: se todos se juntarem e começarem a dizê-la, pode ser que os “especialistas lexicais” – tais criaturas mágicas e divinas – decidam incluí-la numa nova edição do Dicionário da Língua Portuguesa. Pouco provável, mas quem sabe? O “deslargar” conseguiu-o.  

a cruel realidade é que nem tudo o que se diz deve ser, literalmente, transcrito para o papel. 


Um clássico português – tão clássico que causa uma interferência aguda – é o “deslargar”, que surgiu como sinónimo de desandar e de retroceder. Porém, ao ser utilizado tão recorrentemente para intensificar o verbo “largar”, até vários Dicionário já o reconhecem como tal. Será isto um caso para recorrer a um referendo ou apenas de vergonha alheia?   

E a diferença entre “ir de encontro” e “ir ao encontro”? Que grande geradora de tumultos populares! Ora vejamos, “fui ao encontro do Pedro” e “fui de encontro ao Pedro”, embora semelhantes, têm significados bastante distintos: um resulta num convívio, o outro numa agressão
Deem quantos pontapés quiserem na gramática – embora, avise que não seja o caminho mais impressionante – mas, tentem não ir “de encontro” a alguém. É que pode resultar numa queixa junto das instâncias competentes. E a culpa nem é do Pedro, nem da Língua Portuguesa. 

Mas, como diria uma grande parcela da população mais idosa: “Há uns anos atrás, nada disto era assim!”. Pois, está claro que não. Tanto até, que os nossos ouvidos já “normalizaram” a redundância e aceitam a expressão como certa, porém pergunto: se foi há anos, não remeterá para os anos passados? Afinal, ainda não somos videntes para adivinhar o futuro. 
Contudo, se tivesse de o adivinhar, diria estar repleto de pontapés na gramática, assim como o passado esteve. Mas, se é para atropelar a Língua Portuguesa, a dita pátria de Fernando Pessoa, deixo um conselho para todos os leitores: o que diz, não escreva. É que, o que se diz é efémero e o que se escreve é eterno.  


No comments